sábado, 16 de outubro de 2010

Complicando: O que é patrimônio?

Emílio Caetano Ferreira[1]

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Temos no arquivo do blog uma postagem sobre patrimônio, onde estabelecemos o que é patrimônio pelos critérios da UNESCO. No entanto, a presente postagem é para complicar o simples e ampliar a discussão.

Para isso, atentemo-nos para a seguinte pergunta: qual a definição de patrimônio?

Bom, em primeiro lugar, vale ressaltar que a palavra patrimônio tem um caso muito parecido com o que acontece com outros termos como “cultura”, “pós-moderno” ou “arte”. Como são palavras que foram tiradas de um determinado contexto para designar uma ou várias situações ou agregado de coisas, abrem precedentes para diferentes atribuições de significados, que se ampliam ainda mais pelas disputas do “verdadeiro significado” nas normais disputas hegemônicas que ocorrem dentro dos campos ou áreas de conhecimento (KELLNER, 2001) [2]. Só para exemplificar, Terry Eagleton [3] em “A idéia de cultura” mostra a odisséia da palavra cultura desde sua retirada do originário uso (cultivo) até as várias definições atuais, sejam na academia ou no cotidiano. Mas enfim, voltando para o patrimônio, reforçamos sua complexidade através de Mazzucchi Ferreira [4] (2010), para quem “a palavra patrimônio, bem como memória, compõe um léxico contemporâneo de expressões cuja característica principal é a multiplicidade de sentidos e definições que a elas podem se atribuídos”. Pronto, conseguimos o que queríamos, agora está complicado!

Se resgatarmos a origem do termo, perceberemos que patrimônio, no latim patrimonium[5], era entendido como a herança que os filhos recebiam dos pais, ou seja, o que era herdado. Daí, podemos imaginar que essa definição foi ampliada para os bens em geral herdados por uma geração de outra geração e seus novos abrangentes significados. Encontramos diversas definições de patrimônio tanto no sentido mais tradicional, quanto no contexto revisionista dessa definição tradicional, onde transparecem as discussões sobre quais bens são preservados, por que e por quem. Dentre essas definições, destacamos:

* “uma expressão cultural que empresta identidade a um grupo social. É o olhar e a apreensão humana o que definirá e qualificará o patrimônio em suas diversas significações” (RIBEIRO, 2010) [6];

* “Quando se fala de patrimônio, para além da origem jurídica do termo, o sentido evocado é o da permanência do passado, a necessidade de resguardar algo significativo no campo das identidades, do desaparecimento” (FERREIRA, 2010) [7].

* “Na história moderna da preservação, a atribuição de valor dos monumentos históricos está diretamente ligada à característica de excepcionalidade ou exemplaridade do bem patrimonial”. (GONSALES, 2010)[8].

* Canclini (1994) aponta as tendências de reconceitualização de patrimônio cultural como um triplo movimento que abarcaria os seguintes pontos: “a) Afirma-se que o patrimônio não inclui apenas a herança de cada povo, as expressões <<mortas>> de sua cultura – sítios arqueológicos, arquitetura colonial, antigos objetos em desuso -, mas também os bens culturais, visíveis e invisíveis: novos artesanatos, línguas, conhecimentos, documentação e comunicação do que se considera apropriado através das indústrias culturais. b) Ampliou-se, também, a política patrimonial de conservação e administração do que foi produzido no passado aos usos sociais que relacionam esses bens com as necessidades contemporâneas das maiorias. c) Por último, em oposição a uma seletividade que privilegiava os bens culturais produzidos pelas classes hegemônicas – pirâmides, palácios, objetos ligados à nobreza ou à aristocracia -, reconhece-se que o patrimônio de uma nação também se compõe dos produtos da cultura popular: música indígena, textos de camponeses e operários, sistemas de autoconstrução e preservação dos bens materiais e simbólicos elaborados por todos os grupos sociais” (CANCLINI, 1994).[9]

* Definição de patrimônio da UNESCO:

“I. DEFINIÇÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL E NATURAL

ARTIGO 1

Para os fins da presente Convenção, são considerados “patrimônio cultural”:

- os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueológicas, inscrições, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura,

unidade ou integração à paisagem, têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência,

- os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como áreas, que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

ARTIGO 2

Para os fins da presente Convenção, são considerados “patrimônio natural”:

- os monumentos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por conjuntos de formações de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico;

- as formações geológicas e fisiográficas, e as zonas estritamente delimitadas que

constituam habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas de valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico,

- os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas detentoras de valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural”. Trecho retirado de: (UNESCO - Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, 1972).[10]

* Definição de patrimônio na Constituição brasileira:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,

artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico” (CONSTITUIÇÃO, 1988).[11]

Todas essas definições que citamos estão, obviamente, passíveis não só de contestação, mas também de uma discussão mais ampliada, que de fato estendermos nas próximas postagens. O que vale destacar é a grande quantidade de significados e compreensões da palavra patrimônio, e ressaltarmos que cada forma de compreender, como sempre, não é neutra. Por isso podemos entender que Ribeiro (2010) afirme que “é o olhar e a apreensão humana o que definirá e qualificará o patrimônio em suas diversas significações”, cabendo ainda acrescentar que esse olhar está carregado das diversas vivências e contextos de onde provêm. Mais do que isso, surge então algumas dúvidas: quem são os que qualificarão, definirão e determinarão o que é o legítimo patrimônio, que deve ser protegido, preservado e promovido? Quais os grupos envolvidos nessas discussões? Quando surgem essas preocupações? Estudaremos isso detalhadamente numa próxima postagem.


[1] Texto escrito exclusivamente para o blog <<http://muraldjoliveira.blogspot.com>>

[2] KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru (SP): EDUSC, 2001.

[3] EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

[4] FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio: discutindo alguns conceitos. Disponível em: <<http://www.uem.br/dialogos/index.php?journal=ojs&page=article&op=viewDownloadInterstitial&path%5B%5D=88&path%5B%5D=pdf_71>> Acesso em agosto de 2010.

[5] FUNARI, Pedro Paulo A. Os desafios da destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil. Disponível em <<http://www.ufjf.br/maea/files/2009/10/texto1.pdf>> Acesso em agosto de 2010.

[6] RIBEIRO, Wagner Costa. Visões do patrimônio. Disponível em <<http://www.uem.br/dialogos/index.php?journal=ojs&page=article&op=viewDownloadInterstitial&path%5B%5D=89&path%5B%5D=pdf_72>> Acesso em agosto de 2010.

[7] FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio: discutindo alguns conceitos. Disponível em: <<http://www.uem.br/dialogos/index.php?journal=ojs&page=article&op=viewDownloadInterstitial&path%5B%5D=88&path%5B%5D=pdf_71>> Acesso em agosto de 2010.

[8] Gonsales, Célia Helena Castro. A preservação do patrimônio moderno: Critérios e valores. Disponível em: << http://www.ufpel.edu.br/faurb/prograu/documentos/artigo1-teoriahistoriaecritica.pdf>> Acesso em junho de 2010.

[9] CANCLINI, Néstor García. O Patrimônio Cultural e a construção imaginária do nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan; n° 23, p. 94-115, 1994.

[10] UNESCO. Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Disponível em << http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001333/133369por.pdf>> Acesso em agosto de 2010.

[11] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988. Em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>>.

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